Chamem-me Cassandra

Somos meras sombras fixas na tela desta vida, meu Zeus...

Aos 10 anos, Rauli destaca-se pela sua singularidade em relação às outras crianças. Ele é de natureza efeminada, nutre uma paixão pelos livros, aprecia o uso de vestidos e possui três convicções inabaláveis na sua existência:

O seu corpo não corresponde à sua verdadeira essência.

O destino aguarda-o, levando-o à morte aos dezanove anos.

Meu Zeus, tenho plena consciência de que partirei deste mundo aos dezanove anos, longe de Cienfuegos, aqui em Angola.

Identifica-se como a reencarnação da princesa troiana Cassandra.

Sou Cassandra e, se revelasse aquilo que sei, ninguém acreditaria...

Rauli enfrenta uma realidade hostil, onde o irmão é violento, o pai demonstra comportamento violento e promíscuo, e os colegas da escola rejeitam rapazes que sejam diferentes. Para a mãe, Rauli é a materialização do espírito da sua falecida irmã Nancy. Já na escola, ele é apelidado de “Sem Ossos”. Para o capitão do seu regimento em Angola, Rauli se assemelha tanto à esposa Katerina, que permanece em Holguín, que chega a impressionar. Para seus companheiros de armas, ele é Marilyn Monroe, Wendy, Olivia Newton-John... ele maricas.
Entretanto, para Atena, Apolo, Ulisses, Aquiles e até para aquele leopardo oculto entre as árvores, nas noites quentes de Angola, Rauli é reconhecido como Cassandra.

Deuses, destino e violência são elementos intrínsecos à sua existência.

É através dos olhos de Rauli que vemos Príamo, Helena, Heitor, Ájax, Telamónio, os mirmidões e um gigantesco cavalo de madeira atravessar as muralhas de Troia.
No entanto, também testemunhamos episódios da guerra em Angola, assim como o destino dos soldados ao lado de Rauli, vestindo os uniformes das FAPLA.

Morrerá daqui a uma semana, eu sei, mas não digo nada...

Também desvendamos o destino do irmão de Rauli, dos seus pais e o seu próprio destino. Rauli possui clareza quanto ao seu desfecho.

Sempre acreditei que o meu irmão acabaria por matar a família, que um dia apareceríamos apunhalados nas camas, acreditei nisto até ter a revelação de como morreríamos todos e de que eu morreria aqui em África, nas fronteiras do Velho Mundo, de certa forma seria um regresso a Ílion, onde os velhos deuses estariam à minha espera, e também os fantasmas dos meus amantes Agamémnon e Ájax, o que nunca devia ter-me arrancado da estátua de Atena quando me abracei a ela, Ájax, o que levou à força o que eu lhe teria dado de bom grado e que me apareceu ao longe assim que desembarquei aqui em Angola, difuso sob a luz de África, para me dizer:— Ó Cassandra, filha de Príamo, voltaste.

Marcial Gala possui uma escrita exímia, demonstrando habilidade no uso da linguagem, a qual frequentemente se revela lírica, evocativa e repleta de imagens vívidas. No entanto, senti falta de uma maior complexidade nas interações de Rauli com algumas personagens.