Esqueçam os rodriguinhos, as palavras doces, adjectivos, advérbios e quejando floreado rebarbativo e redundante mais próprio para encher chouriço pretensamente literato. Não, a literatura não se alimenta disso e Maria Velho da Costa tem mais o que fazer (e escrever) do que perder tempo a debitar palavreado; certeira e assertiva, ela vai directo ao osso das palavras, ao coração das trevas do mundo que retrata à sua volta. Aqui, no respigar da babugem vem à tona dos dias andados pelas suas personagens, cada frase tem o seu peso certo, o seu sentido, cada palavra assume a medida exacta (o neologismo «poderófilos» é brilhante naquilo que encerra de crivo crítico), cada página é um assombro de bem escrever, reservando-se ainda lugar para uma série de pequenas homenagens da autora a alguns clássicos da literatura.
O tempo deste romance, como já se adivinha, é o presente. O seu ritmo, o de um mergulho voraz nas trevas da crueldade. À laia de road-book (podendo também dar um excelente road-movie), esta é a triste história de uma jovem emigrante do Leste, como que do nada (náufraga?) surgida nas areias da portuguesa Caparica. Myra é um ser sem destino (ou com o destino traçado em cruz), vagueando pelos dias rumo ao sul – como uma criança perdida, e que sem saber porquê caminha em direcção ao Sol, também esta personagem (no fundo uma criança, uma adolescente) avança para a luz que, sempre ouviu dizer, espera os viajantes a Sul. Só que Portugal, o Sul que percorre e procura, está longe de ser um lugar ao Sol, longe de ser o Sul ansiado.
No seu percurso, que mais se assemelha a um calvário, Myra faz-se acompanhar por um cão. Não um cão qualquer, mas um cão de combate, um cão de matar, treinado para o sangue e para o medo. Porém, nas suas mãos e carícias o animal torna-se dócil, amigo, companheiro de segredos, fiel secretários das lágrimas e dos desejos. Às tantas Myra julgar encontrar o seu Sul, julga conhecer o amor. Mas os seus passos têm o destino da miséria – há seres a quem a vida parece negada à nascença. Acelerando para o amor, Myra reencontrará o ódio e a desdita. Tal como Rambo, o cão que também ele parece ter a morte na linha do existir, o cão que nos diz que pior do que ele, um cão dito de matar, é mesmo o homem, esse, sim, verdadeiro animal de matar.
«Myra» é, pois, um livro de procura, mas um livro de desencanto. É um livro sobre nós, sobre o país que somos, um país que desaprendeu de olhar ao outro, um país atravessado pela marginalidade, pela impunidade e pelo desnorte. É sobre um Sul que deixou de o ser e que, cada vez mais, parece ser apenas um território «accionista do Sol», «linda vista para o mar», «remorso de todos nós» que o vemos e vivemos «com horror mal disfarçado».
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