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Estamos em 2014. Euforia no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro. Copa do Mundo prestes a acontecer, Olimpíadas de 2016 à vista. Autoestima da cidade nas alturas. Sensação de que o país havia encontrado um novo caminho. Júlia é sócia de um escritório de arquitetura que está planejando alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia de uma dessas reuniões com a prefeitura, Júlia sai para correr no Alto da Boa Vista, um enclave de Mata Atlântica no meio da grande cidade. A certa altura, alguém encosta um revólver na sua cabeça e a leva para dentro da mata, onde é estuprada. Deixada largada no meio da floresta, ela se arrasta para casa, onde uma amiga lhe presta os primeiros socorros. O rosário de dor, sensação de imundície e "culpa" é descrito com crueza e qualidade literária poucas vezes vistas em nossa ficção. Assim como os percalços junto à polícia para tentar encontrar o criminoso numa sociedade em que basta ser pobre para parecer suspeito. Mas nem tudo é horror e escuridão. A história é narrada para os filhos da protagonista anos depois do terrível episódio. Os fatos retrocedem e avançam no tempo. Temos o início de namoro de Júlia, sua lua de mel numa praia paradisíaca, a gestação. São momentos em que habilmente a autora constrói outra visão do corpo e da sexualidade de Júlia como uma prova, para quem cometeu a violência e para si mesma, de que ela é ainda a dona da própria história.
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Update 14/05/2023A minha resenha foi publicada na revista La Rueda Suelta. Gracias!*****Antes de mais, e tal como em [b:Consentimento 55350524 Consentimento Vanessa Springora https://i.gr-assets.com/images/S/compressed.photo.goodreads.com/books/1600246625l/55350524.SY75.jpg 74967335] de [a:Vanessa Springora 19855159 Vanessa Springora https://images.gr-assets.com/authors/1580908693p2/19855159.jpg], não posso deixar de dar 5 estrelas a Tatiana Salem Levy e, principalmente, a Joana Jabace, a verdadeira vítima da Vista Chinesa.A vista chinesa é um miradouro construído no início do século XX, e que serviu para homenagear o povo chinês pelo cultivo do chá no Brasil. Está localizado no Alto da Boa Vista, em plena Floresta da Tijuca, e quem conhece o Rio sabe que é um dos miradouros mais bonitos (para mim o mais bonito) da cidade. A vista é deslumbrante, dali pode ver-se o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a Lagoa Rodrigo de Freitas, as Praias de Ipanema e do Leblon, o Morro Dois Irmãos e ainda Niterói.Mas, como nós bem sabemos, nos locais mais maravilhosos também acontecem as maiores atrocidades, e a história contada neste livro é de extrema violência. Sem que eu tivesse intuído nada, previsto nada, sem que eu tivesse pensado, está vazio, ou avistado alguém estranho ao longe, sentido algum rastro de medo, um arrepio, uma sensação ruim, sem que eu tivesse recebido algum sinal do mundo externo, o perigo apareceu de repente nas minhas costas. Ele era baixo, forte, encostou uma pistola na minha cabeça e ordenou, me segue, a voz se fundindo à da Daniela Mercury, a mão me apertando o braço, interrompendo a corrida e me arrastando para a floresta, aquela mata linda, exuberante, cantada nos mais belos poemas, exaltada nos guias turísticos e na escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas 2016, aquela mata que todo mundo diz que é o que faz a diferença, afinal muitas capitais têm praia, mas uma mata assim, tropical, verdejante, imensa, só no Rio, aquela mata frondosa, casa de tucanos, cobras e macacos, aquela mata que exala um cheiro doce e enjoativo de jaca, aquela mata que todo mundo admira quando está subindo a Vista Chinesa e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo eu me desligo do mundo, aquela mata virou o meu inferno.Júlia, alguns anos após ser estuprada na Vista Chinesa, decide escrever uma carta aos seus filhos, e contar o que lhe aconteceu.É uma leitura muito difícil, é impossível conter o nó na garganta, dá-nos ódio, raiva e provoca-nos um desconforto constante.A escrita é crua, minuciosamente perturbadora, nos momentos de tensão as frases perdem a pontuação e ficam velozes, transportam-nos para aquele local e fazem-nos sentir as dores, o medo, angústias, sofrimento e o desejo de recomeçar.Mas como ser estuprada e recomeçar?Naquele momento em que quase morri, eu morri. Ele foi embora e eu fiquei morta. Lembro de me virar, olhar para o céu e ter a sensação de que havia morrido, de ver as estrelas, de ouvir o som, como se alguma coisa estivesse se descolando do meu corpo. Eu estava indo embora.Para além do crime esta história é acima de tudo uma história de superação, um processo de cura e de reconstrução, juntar os cacos e vida que segue, renascer e fazer-nos renascer com a personagem. A Joana, que na história é Júlia, é uma Mulher de Coragem.Coragem, porque a violência sexual sofrida por uma mulher repete-se sempre que é preciso narrar o ocorrido. A mão puxando meu cabelo me conduzia para o lugar mais terrível, enquanto eu pensava, por favor, isso não, mas nenhum pensamento o impedia de fazer o que quer que fosse, e foi então que comecei a dizer a mim mesma que o melhor era não pensar, eu até queria não resistir, porque já tinha lido, já tinha ouvido que num estupro quanto mais você resiste, mais o estuprador gosta, se você ficar quieta e aceitar, você pode ter a sorte de ele não gostar e ir embora, se você fingir que está gostando, as chances aumentam(...)Coragem, porque sabe que mesmo sendo vitima há quem a vá julgar. Percebi um tom estranho quando Dulcineia me perguntou por que eu tinha ido correr à tarde se eu sempre corria de manhã. (...) mas de repente ela insistia, por que você foi correr à tarde se sempre corre de manhã? (...)Coragem, porque deu a cara por todas as mulheres que em algum momento das suas vidas foram vítimas de qualquer tipo de violência. Coragem, porque autorizou o seu nome a ser divulgado. Quando o livro ficou pronto, ela concluiu que só explicitar a veracidade dos fatos não bastava. Achava importante revelar a quem pertenciam os fatos. Você quer colocar o seu nome?, perguntei. Sim, ela respondeu. Durante meses, fiz o papel de advogada do diabo, para ter certeza de que seu desejo era mesmo esse, até o dia em que ela afirmou: Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade — e que aconteceu comigo, Joana Jabace.Se por cá os números relativos a crimes sexuais chocam, no Brasil são absolutamente avassaladores.De acordo com o levantamento sobre os casos de estupro em 2019: foi contabilizado que a cada 8 minutos uma mulher é violentada, cerca de 66.123 mil vítimas de estupro e estupro de vulnerável. Um número que pode ser muito maior se contarmos com os casos que não chegam aos órgãos policiais por conta do medo de vingança, pois grande parte dos atos acontecem dentro de suas próprias casas, ou por temor de julgamentos de pessoas ao redor, até mesmo dos poderes públicos.Fonte: oglobo.com