Expressão do silêncio. Múltiplas virtualidades da palavra. Escrita de enigmas e chaves. Corpo, ar, água e fogo. Desabitação do mundo. Deflagração. Obra de movimentação errática ou longo poema contínuo. Liberdade criadora. Pura vibração. Inquietação. Inaudita emoção de leitura.
Refiro-me, evidentemente, à escrita do mestre Herberto Helder, no ensejo do seu novíssimo título A Faca Não Corta o Fogo – súmula & inédita, com o qual se mata a sede de sete anos sem edições. Com a chancela da Assírio & Alvim – editora de Herberto desde 1979, com o admirável Photomaton & Vox –, este é um livro belíssimo, de capa dura cartonada, ilustrada por Ilda David’, a envolver 207 páginas de um poema longo, diverso, mas uno: assim se explica e se entende que as últimas 74 páginas com a poesia inédita não surjam num livro autónomo, mas como mais um membro – de carne, sangue e frémito – do corpo erigido, mas sempre incompleto, na súmula, eximiamente seleccionada; sem transição gráfica, a poesia inédita é anunciada discretamente pelo provérbio grego «não se pode cortar o fogo com uma faca», que o texto esclarece, ao mesmo tempo que dá pistas sobre o ofício da escrita e a criação herbertiana de um mundo: «a faca não corta o fogo, /não me corta o sangue escrito, /não corta a água, /e quem não queria uma língua dentro da própria língua? /…/ eu sim queria, / o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo, /o modo esplendor do verbo, /dentro, fundo, lento, essa língua, / errada, soprada, atenta». (pp. 167, 168).
Tido por muitos como «difícil, hermético, obscuro» – com o texto a dizer-nos que «Há diálogos/ extraordinários na obscuridade» –, que causa «uma espécie de pânico, ou terror» aos leitores e aos críticos, segundo Prado Coelho, Herberto Helder é autor duma escrita que se metamorfoseia a cada passo, num jogo de espelhos, como o próprio diz, onde «cada imagem é a chave de outra imagem – e elas abrem-se umas às outras», pois «tudo são chaves para abrir tudo», «A chave entra na fechadura, a porta abre-se sobre nova porta», já que atrás de um assombro «há outro assombro. / Passos apressados dentro das próprias almas.». A chave-mestra desta poesia de interioridade tê-la-á dado claramente o autor ao leitor, ao tê-lo «como um cúmplice superlativamente adequado ao texto da solidão» e à voz do silêncio, «O silêncio e o que se cria no silêncio. / E o que remexe no silêncio.». Acresce o respeito pelo silêncio da sua auto-reclusão, que o libertou de qualquer mediatismo desde há 40 anos, e o fez recusar o Prémio Pessoa, em 1994.
(...)
[orgialiteraria]
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